O Livre Espírito, Lívia Venina

Fiquei à mercê da loucura do meu livre espírito, que não se prende a nada nem conhece limites. E uma outra parte de mim, aquela que é escrava das convenções, o tempo todo me acusa e faz-me temer todo o resto que me cerceia. E todo o resto cerceia os caminhos que percorro, imprudente e dona de mim mesma, responsável na irresponsabilidade dos meus tortuosos passos. Limito-me e sou eu mesma minha pior algoz, meu pior inimigo, cruel, atroz. Uma luta constante de enamorados, carta de tarô, dentro de mim. Dois caminhos, duas opções, duas vidas, duas mortes. Você é o que você vive, alguém me disse uma vez. E eu vivo liberdade pela metade, porque não sou completamente livre.

Anseio ardentemente o quebrar dos grilhões que me aprisionam a esta parte de mim que raciocina e que tudo teme. Deixá-la para trás, casca vazia e inerte, desprovida de qualquer serventia. Espírito livre e audacioso, experimentando nos ares toda a adrenalina que se pode sentir no universo. Cair, machucar-se e chorar, e achar bom, necessário, imprescindível e experiência única, repleta de milhares de sensações. O lisérgico riso que se tem ao ver as cores do mundo, os sonhos que confundem-se com o real, as gargalhadas ao vento, todo amor e todo o tormento, privilégio privado dos espíritos que alçam vôos cada vez mais altos.

Inverter tudo só para ver como é que fica. Encontrar a irracionalidade na razão, o caos na organização, o verso reverso de tudo. O avesso do mundo. Rasgar, como disse Nietszche, o que nos atrai. E ter, como disse o mesmo, " o perigoso privilégio de poder viver a título de experiência e se entregar à aventura". Correr para bem longe, onde olhar nenhum me alcance, nem por sobre a terra, nem por debaixo dela. Isolar-se em meio à multidão e não ser só, mesmo quando se está eremita no deserto do vasto mundo desconhecido. Conhecermo-nos a nós mesmos como nem deus nem o diabo conhecem. Porque tanto um quanto outro são uma piada de mal gosto, e não podem saber o que é ser livre, pois vivem de regras e limites. Tanto um quanto o outro.

Quero chegar ao ponto de dizer que essas coisas, essas coisas todas que acontecem, não me preocupam mais. Não me dizem respeito porque eu não estou nem aí, nem aqui, nem em lugar algum. À mercê do espírito livre que habita dentro em mim, sou fugidia. Apenas observo de longe, não faço parte disso aqui. Nada me diz respeito, e não digo respeito à ninguém. Só a mim e aos meus solilóquios, meus diálogos imaginários com gente que não existe senão na minha imaginação, meu paraíso particular onde todos são livres, jardim de delícias, sátiros e cornucópias.

Estar fora de mim e de fora me observar, e achar tudo patético e careta, e ficar confortável do lado de fora, faça chuva, sol , dilúvio, tempestade, hecatombe nuclear. É sentir na pele o toque, o gosto, a dor, o prazer e pagar o preço pelas sensações, seja ele qual for. Experimentar e rir. E mandar os outros às favas, que ninguém tem nada com isso.

Se é a vida uma ilusão, que seja a mais bonita e colorida, suave perfume de incenso, gota de orvalho na manhã que raia pálida de sol. Que seja a dor castelo obscuro nas entranhas do inferno. E que saltem , estridentes, todos os demônios pessoais.E que o carinho seja sempre o toque de um anjo iluminado, alvas asas, fluidez vaporosa. E que tudo seja absorvido até a última gota: o desejo, o ódio, o amor, a paz, a guerra. Porque é disso tudo que a vida é feita, e é disso que o livre espírito se alimenta.

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