"O palco é o melhor lugar do mundo", Egberto Gismonti

"Vamos musicando, como dizia meu tio Edgard". Assim Egberto Gismonti ia conduzindo o ensaio com a Orquestra Philarmonia Brasileira, no teatro Alfa, em São Paulo, nesta quarta-feira. Da platéia vazia, quem não conhecesse a história por trás do sujeito de gorro branco, cabelos presos, cavanhaque por fazer, calça jeans surrada e camiseta da Aple poderia achar que Egberto estava profundamente incomodado com o andamento dos ensaios da orquestra, pois discutia, de forma contida, com o maestro Gil Jardim. Mas não era bem assim. "Desculpem. Estou rindo porque já vi essa situação várias vezes", disse para os músicos no meio de uma pausa tensa em que tentavam fazer seu violão, amplificado, ser ouvido pela orquestra.

Não é a primeira vez que o compositor e multiinstrumentista se apresenta ao lado de uma filarmônica - aliás, nos últimos anos, é o que mais vem fazendo. Um de seus mais recentes trabalhos foi com uma orquestra lituana, no CD Meeting Point. E as orquestras, brasileiras, correm para executar notas ligeiras e ao mesmo tempo imprimir o "molejo" necessário para o tom popular regional das melodias de Gismonti. "Mas tem uma coisa muito legal nisso tudo. Horas antes de começar o show, depois da última passagem, ainda está tudo meio incerto. Mas assim que abre o pano e começamos a tocar sempre acontece aquela mágica inexplicável. A vida fica a melhor coisa do mundo e é isso o que me sustenta vivo", diz o compositor, pelo telefone, no dia seguinte ao ensaio, em uma entrevista exclusiva à reportagem do Terra.

Para a geração que ainda não conhece o compositor e instrumentista, basta dizer que seu nome é referência fora do país - não, não vivemos somente de Tom Jobim e João Gilberto. A música instrumental brasileira - que também é popular, segundo Egberto -, é muito respeitada fora das fronteiras da nação do "apagão". Egberto é um exemplo, Hermeto Parcoal é outro. O primeiro, está envolvido em uma enormidade de projetos - nem gosta muito de falar deles, pois se lembra que tem muito o que fazer nos próximos meses em sua casa no Rio, e ainda se preocupar em economizar energia elétrica. "Tomara que chova bastante na cabeceira das Usinas", pede com humor o músico. Mas uma vertente, dentre tantas, que vai lher render muito trabalho são as trilhas para cinema que está fazendo, como a do novo filme do amigo Ruy Guerra sobre mais uma fábula de Gabriel Garcia Marquez, e a da sequência do filme Gaijin, de Tisuka Yamasaki.

Enquanto não volta para a frente do computador, em que sintonizado com as novas tecnologias edita sua música de acordo com as imagens no monitor, Egberto segue "musicando" a carreira e jovens orquestras.



O primeiro ensaio no teatro foi até tarde? O clima parecia agitado durante os testes de som. 
Foi até umas 10h da noite. Você já viu algum ensaio de banda? É a mesma coisa. É assim mesmo. Vamos continuar ensaiando até o dia do show. É algo normal.

Existem pianistas que regem a orquestra do próprio piano. Você já pensou em fazer isso?
Não gosto muito disso, não. Meu negócio é outro. Trabalho com orquestras, mas minha opção é escrever e tocar. Prefiro assim. Mas pode até ser que um dia faça isso, reja e toque ao mesmo tempo.

Você continua morando metade de seu tempo no Brasil e metade fora?
Viajo muito, mas não estou morando mais fora. Fico um tempo muito longo viajando. Tinha uma casa em Paris, mas era mão-de-obra demais. E mesmo lá, nunca se toca exclusivamente em Paris e sim em cidades próximas. Depois eu ficava querendo ficar onde tinha minha casa e atrapalhava a coisa. Então, acabei me acostumando com as viagens. Fico em hotéis e estou meio em casa.

Seus últimos trabalhos têm sido com orquestras, menos intimistas. O que atraiu você a fazer um show com músicos da Orquestra Philarmonia Brasileira?
Me convidaram para três dias de show e era uma turma muito boa. Vamos fazer shows na Argentina e outros locais nos próximos meses.

Anos atrás você disse que não encontrava no Brasil uma orquestra capaz de executar suas músicas e arranjos do jeito que queria
Na realidade, é o seguinte: não existe esse negócio de músico certo para se tocar uma composição. Se existe facilidade, é igual para qualquer um. Essas orquestras, que tocam a chamada música "clássica", tem uma dificuldade comigo, pois o que faço não é música "clássica". Tem um caráter de música popular brasileira. E elas normalmente não têm o suingue necessário para isso. Mas esse pessoal que vai tocar comigo no final de semana é composto por gente muito ligada em música brasileira. E vou continuar tentando registrar e conseguir que consertos como esse resultem em boas gravações. Por que tem de dar certo tudo, tanto captar o show quanto executar as músicas. Tentei em outras ocasiões e não deu certo. Às vezes a orquestra toca bem, mas a captação do show ao vivo fica ruim. 

Você está com 30 anos de carreira. Já passou pela experiência de achar que acabou sua fonte de inspiração? Li que o Sting passou por isso uma vez e ficou em pânico, achando que nunca mais ia produzir algo interessante. 
Ele passou por isso uma vez só? Todo mundo que faz música durante muitos anos passa por isso. A música é uma atividade igual a qualquer outra. Tem momentos em que você encontra uma pessoa legal, separa, encontra outra. Existem períodos. Mas uma crise assim eu não passei, de achar que nunca mais ia conseguir compor algo. No meu caso eu toco muitas vezes por ano. Tem horas que fico sem paciência desse negócio de ficar viajando. É muito chato essa coisa de avião. Parece com aquela coisa de caixeiro-viajante.

Então, viajar como músico definitivamente cansa?
Tem dia que você acorda e não sabe direito onde está. Você faz show no Japão, dorme, acorda, abre a janela e vê a Torre Eifel. Quando é verão na Europa é mais difícil ainda. Nos países nórdicos têm muito pouca luz durante o inverno - é o chamado sol da mei noite. Já aconteceu uma situação maluca de eu chegar de uma viagem do Japão, passar pelo pólo, Copenhage e chegar a Oslo. Dormir, acordar às 8h30, descer para o restaurante e pedir um café da manhã - enquanto todos estavam jantando.

Mas isso não afeta sua produção musical?
A pior situação na realidade é compor uma música e perceber que já havia feito ela antes. Quando chega nesse ponto dou uma parada, pode ser de 15 dias a um mês. É difícil, pois tenho o hábito de tocar todo dia. Não que eu estude rigorosamente algumas horas por dia.

E nessas paradas, faz o quê?
Ah, o que normalmente faço. Acordo, vou ao clube andar - gosto de caminhar, onde quer que eu esteja. Vou à piscina, jogo tênis, leio, encontro os amigos.

Tem feito isso atualmente?
Sempre arranjo tempo. Apesar de viajar muito, aprendi a me adaptar. Aliás, viajar muito tem suas vantagens. Você briga muito menos com os amigos. Como você os vê de tempos em tempos, quando nos encontramos está tudo bem. É aquela coisa natural de sentir saudades. Quando você os vê todo dia é que fica ruim.

E você navega muito na internet?
Tenho uma relação com o computador de uns 10, 11 anos. Aliás, um antigo provedor meu foi absorvido pelo Terra e acabei tendo o portal como um dos endereços. De vez enquando chega um email do Terra com notícias de esporte, essas coisas. Mas uso mais o computador para edição de partituras e áudio. Como estou fazendo muitas músicas para cinema, uso ele para ver cenas, editar material. Comprei recentemente um queimador de CD que grava em até 16 vezes. Esperar 35 minuto minutos para queimar um CD que você precisa enviar para o diretor às vezes cansa.

Mas esse "troço" de ficar muito ligado em internet talvez não faça bem, não acha? (risos)
Não é questão de fazer bem. Tem um site que eu gosto, que esqueci o nome, que na página de entrada tem o globo, a Terra. É um banco de dados de cada cidade importante no mundo, com web cams espalhadas. Foi uma amiga que me indicou. Ela disse: "Tal dia, tal horário, se conecte e vá até a web cam tal. Vou dar um adeuzinho para você". Foi engraçado. Mas não adiantou nada, pois depois ela me ligou e ficamos falando disso horas no telefone. E agora com a falta de energia vai acabar essa história de deixar o computador o tempo todo conectado na internet.

Com seus anos de carreira, você já fez de tudo com praticamente todo mundo. É difícil encontrar coisas que te toquem profundamente na música e na vida? Pergunto isso por que o Gilberto Gil disse em uma entrevista que a coisa para ele funcionava como uma espécie de agulha de um sismógrafo, oscilando muito pouco e raramente alcançando picos.
Não sei exatamente o que o Gil disse, mas no meu caso não tem nada a ver com isso. Tenho momentos em minha vida que foram definitivos. A primeira vez que fui para a Amazônia, conhecer o Sapain. Quando conheci os aborígenes no deserto, músicos na Índia. Tem um outro lado também que são os meu filhos, que moram comigo. Isso faz o tal sismógrafo balançar. Descobri que o ideal é que eu fique disponível para gostar de viver o tempo todo. A vida tem me sido benevolente, me dado coisas. Emoções muito fortes dependem de você e não do fato. Às vezes você está sentado, conhece uma pessoa, se apaixona. E isso não precisa ser necessariamente uma mulher, pode ser um quadro. Minha linha emocional bate em cima e embaixo, o tempo todo. A vida me ensinou que tenho de estar disponível para ela. Querer coisas novas, o que envolve conhecer novas pessoas, admitir o quanto não se sabe. E até se permitir a não gostar mais do que gostava pra caramba nos anos 70, 80. Não preciso gostar do que não gosto mais. Eu relacionava gostar com qualidade.

Você tocou com seus filhos no palco tempos atrás. Eles ficaram contentes com a experiência?
Bom, contente é pouco. Acho que foram picados pela música naquela ocasião. Naqueles show no Itaú Cultural, eu trouxe alguns amigos como convidados. E alguns deles tem filhos, que vi nascer, na mesma idade que os meus. Por tabela, sinto que também faço parte da paternidade deles. Vi nascer, né? Meus filhos agora estão estudando em conservatórios - e tocando músicas que eu gosto, o que é melhor. Quando minha filha tinha 11 anos, adorava a Madonna. Como viajo muito, ela vivia me pedindo livros dela. Em todo lugar que ia entrava em uma livraria e comprava livros da Madonna. Acabei que comecei a ler esses livros e virei um expert em Madonna. Sei tudo. Acabei gostando da Madonna, pois via a alegria da minha filha, que ficava felicíssima com os livros.

Existe uma nova etapa igualmente envolvente após a paternidade?
Não sei. Não tenho por hábito considerar planejamentos para amanhã ou depois. Tem um dado importante em minha vida que é o involuntário. Qualquer produtor pode dizer que meu trabalho não é comercial. Mas tenho 50 discos gravados e tenho um selo que produz novos artistas que rodam o mundo inteiro. Seis anos atrás tive uma grande surpresa, quando me separei de minha mulher. Meus filhos resolveram morar comigo. Tive de aprender, permitindo o desconhecido. Os filhos, daqui por diante, vão crescer, ficar independentes - e é algo involuntário. Vai que fazem uma música genial? Ou que façam algo que é uma bomba. Vai me dar um gás para a vida. O bacana do negócio da vida é que se você se permitir, vai acumulando sentimentos legais e a vida fica mais gostosa. E agora tá muito gostosa, tranqüila para mim.

E as músicas de seu tio Edgard e seu avô Antonio. Pensou em um dia gravá-las?
Pensei sim, mas não adianta eu tocá-las. Como são valsas, músicas dos anos 40 e 50, precisa ser algo que tenha o espírito da época. E tem de ser conversado com a família Gismonti - todos têm de gostar e aprovar a idéia. Tenho uns pudores estranhos também: eu produzir, na minha gravadora. Não gosto. Se fosse outro selo a coisa ficaria mais fácil.

Você já pensou em escrever um livro sobre música, experiências no meio musical?
Na verdade, escrevi dois, lançados na Espanha. Estou terminando um agora que é uma coletânea de crônicas minhas, que fiz para um editor amigo meu no Jornal do Brasil. Como viajo muito, me tornei uma espécie de olheiro de aeroporto, restaurantes, avião. Me divertia muito. Tem cada tipo esquisito nesses lugares. O "malandro", por exemplo, que tenta parecer que não está disfarçando. Tudo com um tom particular, meio ficcional. Mostrei para uns amigos que disseram que minhas crônicas eram geniais. Mas amigo bom é aquele que é cúmplice em tudo que você faz. Pois à princípio, o amigo tem sempre razão. Mas quando falam que são geniais, digo: "Pára de mentir!" Até parei de escrevê-las, pois percebi que a coisa estava satisfatória demais. Fiquei desconfiado se estavam tão boas assim. Mas tem uma editora amiga minha que está com essas crônicas. Como ela não tem pressa e nem eu, ficamos aguardando.

______________________________________________
Entrevista Egberto Gismonti - 08/06/2001
Ricardo Ivanov, Redação Terra.

0 comentários: