Redefinição do conceito de ouvir música, Koellreutter

A corajosa busca pela redefinição do conceito de ouvir música
Aos 85 anos, o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter lança novo disco, é tema de livro que discute seu método de ensino e de um documentário que resgata sua história de vida

Paulo Humberto/BVDA / JOÃO LUIZ SAMPAIO
O ESTADO DE SÃO PAULO, 11 de Setembro de 2000

A música que transcende a própria música na busca da interdisciplinariedade, reflexo de um processo criativo que coloca as etapas de criação antes mesmo do resultado em si. A preocupação com o tempo vivencial em detrimento do cronológico. A liberdade na busca de uma nova estética, capaz de fazer as pessoas construírem um novo mundo de referências, baseado na experiência e na hierarquia não absoluta. Essas são algumas das idéias que marcaram a vida do homem, compositor e maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, e que estão presentes no disco Acronon.

O disco, que tem a participação do pianista Sérgio Villafranca, faz um apanhado da produção musical do maestro nos últimos 50 anos, reunindo composições de diversos momentos de sua carreira. "Não quisemos, no entanto, organizar as peças de modo cronológico uma vez que, para Koellreutter, o tempo que vale não é o de relógio, mas sim o vivencial", conta Villafranca.

Dessa forma, ele acredita que o disco se encontra em completa harmonia com o modo de vida e a ideologia do maestro. O título Acronon deriva do grego, em que "cronos" significa tempo e o "a", alfa privativo, que não nega, mas dá margem à superação, à transcendência.

"O ponto final de uma obra, em que não haveria mais nada a dizer sobre ela, é uma ilusão: tudo deve ser nova interpretação e o processo de execução é mais importante do que o resultado", afirma Koellreutter, que aponta o papel do intérprete como fundamental. "O intérprete não deve executar a partitura dos compositores, mas co-participar de um processo de comunicação entre ele, o compositor e o ouvinte."

Para ele, Villafranca é um dos poucos pianistas brasileiros capazes de "interpretar criativamente". "Ele é, para mim, o protótipo de um mitógrafo musical, que interpreta, ou melhor, traduz o conteúdo onijetivo de uma obra musical, isto é, um texto que desconhece a divisão rigorosa entre as realidades subjetiva e objetiva da obra."

Nesse contexto, no qual a interpretação aparece como processo de criação, é importante ressaltar a esfera acronon de Koellreutter, reproduzida na capa do disco, como ponto central. "Minha visão de mundo me faz sentir tudo o que vivemos como se fosse um todo transparente e só por meio de uma esfera isso poderia se transformar em música", relata Koellreutter.

A esfera tem três diferentes tipos de marcação, que indicam diferentes andamentos. Em vermelho, estão os andamentos mais rápidos. Em preto, os mais lentos e, em verde, os moderados. Apesar disso, Koellreutter e Villafranca fazem questão de ressaltar que não há hierarquias na música. "A música, assim como a arte em geral, do passado é hierárquica", lembra o pianista.

"Aqui não há hierarquias absolutas, tudo se constrói a partir de escolhas", completa o maestro.

Assim, o resultado sonoro é multidirecional. "Trata-se de uma música polifônica, não por possuir várias vozes, mas pelo número de figurações possíveis", explica Villafranca. "O mesmo som pode ser agudo e grave, simples e complexo, o que exige muita improvisação, colocamdo o intérprete, de certa forma, também como compositor." Essa possibilidade múltipla de significados fez com que, em busca de alcançar dimensões maiores de interpretação, o pianista tocasse, na gravação, em dois pianos diferentes.

"Ao fazer duas versões diferentes da mesma peça em instrumentos diferentes, fica mais fácil sentir as múltiplas possibilidades que a interpretação permite", mostra Koellreutter.


À procura de novas referências musicais
Maestro acredita na mudança da relação entre o compositor e o ouvinte

Coragem. É esse o atributo que o maestro Koellreutter acredita ser indispensável para a compreensão e vivência da música contemporânea. Em um universo musical repleto de diferentes referências e rupturas com as formas tradicionais de composição, o ouvinte deve fazer esforço para entender a partitura não em contraposição ao repertório tradicional, mas como algo novo que precisa ser compreendido a partir de outros parâmetros.

"É mais difícil perceber e entender uma nova linguagem, mas essa dificuldade é humana", aponta o maestro. "Se os elementos utilizados pelos novos compositores são diferentes, o vocabulário é outro, a sintaxe tem de ser outra, a gramática é nova, o que dificulta a compreensão dos valores emocionais da música", observa ele. "Essa situação exige um ouvinte mais ativo e co-participante: no fundo, a relação entre o compositor e o público deve ser diferente."

Em busca de palavras que possam melhor descrever o significado daquilo que ele procura defender, Koellreutter, após um longo silêncio, volta-se para um quadro de Saulo Di Tarso, pendurado em uma sala de seu apartamento no centro da cidade, no qual recebeu a reportagem do Estado. "É necessário ficar claro que, para vivenciar uma realidade como essa, é preciso ter coragem."

Essa coragem é fundamental na ampliação da consciência. "Ela é fundamental para que as pessoas passem a ouvir música de outro jeito, para que o universo de referências seja novo: é este o sentido da nova estética, ter a arte como parte integrante da vida", conclui.

Ensino - A busca pela falta de rigidez na interpretação e na compreensão é, além da meta de vida do maestro e compositor, uma das principais características do Koellreutter professor. "Quando se ensina uma matéria criativa como a música, o professor deve estar disposto a ??aprender do aluno a maneira certa de ensinar, uma vez que cada estudante apresenta ao professor outros problemas e tendências: só assim se estabelece um diálogo vivo, essencial, de idéias."

Tudo isso sempre tendo em vista a não utilização da hierarquia, que dá ao processo educacional uma rigidez desnecessária. "Uma das melhores aulas que dei foi quando o aluno chegou, levantou-se, e disse: `Hoje quem dá aula sou eu'." (J.L.S.)


Veio ao Brasil há 63 anos, para um recital de flauta
Malvisto pela Gestapo, ao perder a cidadania germânica ele já havia fundado o Música Viva

LAURO MACHADO COELHO
Especial para o Estado

Aos 12 anos, Hans-Joachim, filho do dr. Koellreutter, um dos médicos mais respeitados de Freiburg, foi posto de castigo pelo pai. Ele havia roubado dinheiro, na escola, dos colegas ricos, para comprar chocolate e distribuí-lo para os colegas pobres. Em casa, como não tinha nada para fazer, esse Robin Hood mirim resolveu arrumar um armário e, nele, encontrou uma velha flauta do Exército austríaco. Foi o início da paixão, e de toda uma vida dedicada à música. O dr. Koellreutter não gostou muito da idéia de seu filho ir estudar música; mas mandou-o para Leipzig, onde faria um curso sólido, num centro musical conservador. Na estação, porém, o rapaz mudou de trem e foi para Berlim, a efervescente capital de todos os experimentalismos. Era a primeira manifestação da atitude anticonvencional que Hans-Joachim Koellreutter sempre teria em relação à música.

Aos 85 anos, o artista conserva o mesmo espírito vivo que fez dele um dos grandes divulgadores da música contemporânea no Brasil, onde chegou em novembro de 1937, para dar concertos no Norte, como flautista, trazido por uma organização chamada Instrução Cultural Brasileira. E no Brasil ele ficou, quando se recusou a atender à convocação dos nazistas, que o chamavam de volta à Alemanha para alistar-se, iniciada a guerra. Já malvisto pela Gestapo antes de emigrar, por causa de sua amizade com artistas judeus e de suas atitudes antifascistas, Koellreutter perderia definitivamente a cidadania germânica em 1942. Além de dar aulas no Conservatório do Rio de Janeiro, onde ele havia fundado o grupo Música Viva, responsável pela primeira execução no País de obras de Bartók, Stravinski ou Hindemith - com quem tivera muito contato em seus anos de estudo em Berlim.

É impressionante o currículo do compositor, professor, conferencista e animador cultural Hans-Joachim Koellreutter, em suas seis décadas de Brasil.

Colaborou com Francisco Curt Lange em pesquisas sobre a música colonial brasileira. Lançou o Manifesto de 1946, documento fundamental para a abertura dos músicos brasileiros ao atonalismo. Dirigiu uma quantidade enorme de seminários - entre os quais os cursos da Pró-Arte, no verão, em Teresópolis - e, entre seus alunos, teve Cláudio Santoro e Guerra Peixe, Edino Krieger e Eunice Catunda, Isaac Karabtchevsky e Tom Jobim. E publicou ensaios preciosos sobre música contemporânea e também sobre suas viagens, nas décadas de 50 e 60, ao Japão e à Índia, onde fez estudos aprofundados de seus sistemas musicais.

É claro que aos conservadores e, em especial, àqueles que defendiam um nacionalismo avesso à absorção de idéias estrangeiras, a atividade de Koellreutter não agradava. Camargo Guarnieri publicou, em 1950, a Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, em que, sem citar seu nome, o criticava por querer "corromper e desnacionalizar os jovens músicos brasileiros". Causou polêmica também um artigo publicado no Estado, em 1952, em que ele era acusado de ter plagiado Elie Siegmeister em um artigo publicado, em junho de 1948, no primeiro número da revista Fundamentos. Esse tipo de oposição, com o qual Koellreutter sempre deparou, talvez tenha sido o responsável por ser insuficiente o número de votos, quando ele se candidatou, em 1981, à Academia Brasileira de Música.

Mas o tempo das polêmicas passa e o balanço da carreira de Koellreutter, hoje que ele chega aos 85 anos, é o de um homem que contribuiu decisivamente para a expansão da música de nosso tempo neste país - mas estendeu sua missão de divulgador até mesmo à Índia, onde fundou a Delhi School of Music -; o do educador que sempre acreditou na música como "uma linguagem que representa todas as idéias importantes do mundo em que vivemos"; e que sempre afirmou: "Eu aprendo de meus alunos aquilo que tenho de lhes ensinar."

1 comentários:

Laís disse...

Que loco! Acabei de ver uma citação sobre ele e abro aqui e dou de cara com ele de novo, rs.

Bem legal!

Sempre com ótimas referências Bruno. Parabéns!