Pirataria - Gaiato no navio

Quadro clandestino ficou exposto por mais de dois meses sem que ninguém notasse


Gaiato no navio
Márcio Fernandes/Fabiana Beltramin/Folha Imagem

Estudante burla organização e expõe obra não autorizada na Bienal; direção não quis comentar caso

IVAN FINOTTI
DA REPORTAGEM LOCAL 

Há pouco mais de dois meses, o estudante de jornalismo Cleiton Campos, 21, pintou um navio pirata em um pequeno quadro. No dia 31 de março, uma semana após a abertura da 25ª Bienal de São Paulo, colocou uma bermuda verde-oliva bem folgada, enfiou o quadrinho no bolso da frente e foi para o parque Ibirapuera. Lá, pagou o ingresso de R$ 6 (tem carteira de estudante) e, com a ajuda da namorada, procurou um cantinho para sua obra.

Encontrou um bom lugar no andar inferior, em meio a pinturas e fotos eslovenas, bem ao lado de um telhado construído no chão. Mas demorou meia hora até que juntasse coragem para tirar o quadrinho do bolso. "Tinha um monitor ali meio desconfiado", conta Campos. Uma ordem vinda da namorada Adriana Santos ("Coloca isso logo aí, meu!") resolveu a situação: Campos depositou carinhosamente a obra no chão e se mandou.

Passados dois meses, ninguém da maior exposição de artes plásticas da América Latina percebeu a pirataria. Anteontem, último dia da Bienal, o quadro alienígena continuava lá, incólume.

A direção da Bienal não quis comentar o ato de Campos. Por meio da assessoria de imprensa, a diretoria informou que aguardaria a publicação desta reportagem para decidir se falaria a respeito.

"Estou admirado. Pensei que iam perceber em, no máximo, uma semana", diz o artista pirata. "O que será que os monitores falavam sobre esse quadro nas visitas das escolas?", pergunta-se. Seja o que for, a obra de Campos foi apreciada por milhares de pessoas, talvez centenas de milhares, muitas das quais pagaram R$ 12 para ver as obras sobre grandes metrópoles, feitas por 190 artistas de 70 nacionalidades.

A obra, chamada "Navio Pirata", não é apenas um quadro pintado. Tem relevo e detalhes. Primeiro, ele esculpiu com estilete o navio, a caveira pirata e o mar numa espuma cinza ("Peguei no lixo"). Em seguida, passou guache nos elementos esculpidos ("Para dar uma cor, sabe?"). Depois, grudou a espuma numa madeira vermelha ("Tipo um pedaço de caixote de uva"). Para arrematar, pirogravou as consoantes de seu nome, CLTN, na frente e atrás, e datou: "Março - 2002".

Não é, portanto, uma obra feita às pressas e sem cuidados. "Pensando bem", diz ele, "como iriam perceber? Os caras vêem qualquer extintor e já acham que é obra. Por que um quadro iria despertar atenção?".


Subversão

A intenção de Cleiton Campos ao enganar a Bienal não foi expor sua arte. Ele próprio não leva muito a sério suas criações de fim de semana. A idéia foi outra: "Não tive pretensão artística; não sou artista. Estava indo visitar a exposição e tive a idéia de passar esse trote. Foi uma piada".

Piada que não é nova, diga-se de passagem. Nos EUA, o comediante Tom Green, da MTV, já registrou a reação de pessoas a quadros supostamente artísticos. Aqui, Marcos Mion foi acusado de plágio ao fazer o mesmo na Bandeirantes.

De qualquer forma, Campos não se gaba de ter inventado nada. "Qualquer um poderia ter feito isso. O lance não é o quadro, e sim ter colocado o quadro lá. Foi esse ato, e não a qualidade artística, que valeu. Valeu por ridicularizar a organização do evento."

Estudante do segundo ano de jornalismo da Metodista, Campos trabalha há dois anos na editora Conrad. Ali, na Conrad, ele teve contato com o que se chama de guerrilha cultural, ou melhor, anticultural. "São movimentos que não pretendem fazer uma arte mais ousada, mas questionar a existência da arte", diz Rogério de Campos, sócio da editora.

Nos últimos anos, a Conrad lançou diversos livros sobre guerrilha anticultural, incluindo os sete títulos da coleção Baderna (www. baderna.org). Os livros falam de grupos especializados em sabotar vernissages de arte, invadir e atrapalhar leituras de poesia, criar campanhas antipublicitárias, distribuir convites falsos para festas chiques e por aí vai.

Visto por esse lado, a pirataria de Campos é mais do que uma simples molecagem; é também um ato de contestação e de crítica à arte estabelecida.

"Muito bom, muito engraçado o que ele fez", diz o editor Rogério de Campos, sem esconder uma ponta de orgulho pela transgressão de seu funcionário subversivo. "Mas agora vou ficar de olho nele para ver se não apronta uma aqui na editora", diverte-se.


O público

Anteontem, no último dia da 25ª Bienal de São Paulo, havia muita gente passando para ver as obras eslovenas e, de quebra, o quadro que entrou de gaiato.

E não é que o "Navio Pirata" chegou a causar sensação? Por volta das 17h, duas moças se aproximaram apontando o quadro. "Olha!", disse Juliana Galvão para Fernanda Andréia da Silva, ambas estudantes de 16 anos. "Atraiu nossa atenção", explicou Juliana, "porque a gente tem um amigo chamado Esqueleto. Ele ia adorar". "Achei uma das obras mais legais da Bienal, principalmente porque lembrou nosso amigo", completou Fernanda.

Mas nem todos se entusiasmaram. A funcionária pública Izilda M. Ferreira, 50, achou que a caveira lembrava coisas ruins. "É meio tétrica, mas deixa eu ver mais de perto", disse, ajustando os óculos. "É. Definitivamente prefiro a foto daquela flor ali em cima."

E o casal de namorados Bruno Tigre, 23, e Anita Lima, 22, nem chegou a reparar no quadrinho encostado ali no chão. "Ele parece meio sozinho ali. É um lance meio mar", disse Bruno, visivelmente desinteressado.
Informado de que "Navio Pirata" não fazia parte da seleção oficial da Bienal e que fora colocado ali escondido, Bruno mudou de opinião. "Ninguém descobriu? A idéia era colocar algo que não fosse parte da Bienal? Ele achou um bom lugar. E conseguiu. Achei bem mais interessante agora."

Agora, terminada a exposição, Campos ainda não está satisfeito. Afinal, ele deu "Navio Pirata" para sua namorada e não sabe se conseguirá entregar o presente. "Espero que não embalem junto com o resto e enviem tudo para a Eslovênia. Agora que já foi exposto, será que a Bienal vai me devolver?" Boa pergunta.


São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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