Plebiscitu, The Limbo Ensemble

Anarquia musical

Um contemporâneo de Schoenberg, Kandinsky e Nijinsky, o compositor ucraniano de ascendência alemã Thomas von Hartmann (1885-1956) escreveu no ensaio “On Anarchy in Music” isto que se segue: “Enquanto a voz interior não se rebelar, tudo é permitido. Em todas as artes, e especialmente na música, qualquer método que surja de uma necessidade interior está correcto.”

Hartmann referia-se, em particular, à improvisação: “O que o compositor deseja expressar é o que no momento é a intencionalidade da sua intuição.” Com esta frase, mal imaginava ele que portas abria. Se na altura este pensamento foi lido como um convite para uma adequação da escrita à espontaneidade, quiçá com a sua substituição pela práxis imediata, o certo é que também pode ser entendido no quadro de outros tipos de combinação do intuitivo com o “composto” e até, porque não, no sentido de se compor o que foi intuído.

Nessa medida, “Plebiscitu”, do Limbo Ensemble, é bem uma obra de alcance hartmanniano. O multi-instrumentista português Paulo Chagas recolheu os registos das improvisações de nove músicos de diferentes países (Austrália, Estados Unidos, Brasil, França, Suécia e Portugal), designadamente Massimo Magee (trompete), Fernando Simões (trombone, objectos), Karl Waugh (violino, violino eléctrico), Quincas Moreira, Travis Johnson (ambos em violoncelo), Thomas Olson, Paulo Duarte (ambos em guitarra eléctrica) e Bruno Duplant (contrabaixo, percussão), para com diferentes combinações dos participantes proceder a montagens e arranjos de sua própria lavra. Isso depois de se acrescentar a si mesmo, em clarinetes sopranino e baixo, flauta, oboé, saxofone soprano, fieldrecordings, electrónica e ondas curtas…

O processo de trabalho seguiu um objectivo: “Criar um limbo colectivo em que cada uma das linguagens fosse suficientemente ambígua e ao mesmo tempo personalizada, de forma a cobrir estados de espírito diversificados, mas dentro de uma determinada coerência estética”, para utilizar as próprias palavras de Chagas.

Se práticas semelhantes tiveram já, no nosso país, Nuno Rebelo e Miguel Feraso Cabral, respectivamente para, por exemplo, o projecto “Azul Esmeralda” do primeiro e o Nevermet Ensemble do segundo, as referências de Paulo Chagas foi buscá-las este a uma sua experiência anterior: a que partilhou com Duplant e David Sait num álbum ainda por editar, “Branching Voices”.

“A metodologia experimental de colagem aí aplicada agradou-me de tal forma que me motivou para a criação de algo ainda mais consistente dentro da técnica do jump-cut. Assim, enviei convites a uma série de músicos meus amigos no sentido de gravarem e me enviarem improvisações suas a solo, a fim de constituírem a matéria-prima das ‘composições’ que eu pretendia fazer. Ao longo de quatro meses de um exaustivo, e por vezes desanimador, trabalho, entendi que tinha chegado às versões finais dos oitoandamentos que constituem esta suitede música de câmara electroacústica, a que chamei ‘Plebiscitu’”– esclarece o músico.

É o que aqui encontramos, uma vez mais comprovando que “qualquer combinação de sons, qualquer sequência de combinações tonais, é possível” (Hartmann). No caso, o que vários improvisadores fizeram individualmente foi triturado e misturado em estúdio, com os tempos mais lentos (dedutivos) de uma manipulação laboratorial, resultando numa música colectiva conseguida por meios virtuais.

Será ainda música improvisada? Tudo indica que sim e tudo indica que não. Na verdade, não interessa. Não há limites para a criatividade, “tudo se desenvolve e é sujeito a determinadas mudanças”, tal como defendia Thomas von Hartmann em prol da anarquia na música.

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Texto por: Rui Eduardo Paes, crítico musical, ensaísta e editor da revista Jazz.pt.

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